Flutuação do mar e seu efeito na biodiversidade em ambientes de água doce

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Para compreender a biodiversidade atual, é essencial explorar além dos fatores ecológicos atuais e mergulhar na história evolutiva dos organismos, revelando como as variações no nível do mar podem ter influenciado a diversidade de peixes em ambientes costeiros continentais ao longo do tempo.

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Os ambientes de água doce são caracterizados por possuírem um grande número de espécies. Ilustração com colagem imaginária que representa a grande diversidade de espécies de peixes e outros animais aquáticos.

A vida evolui. Uma das coisas mais importantes reconhecidas por Darwin é que a vida que conhecemos se diversificou a partir de uma única espécie, a qual representou a emergência da vida há cerca de 4 bilhões de anos. Ao longo desse tempo, com base nessa única espécie, processos de especiação (multiplicação) e extinção de espécies, promoveram a diversificação da vida. Se hoje conhecemos um pouco sobre as espécies que habitam o planeta – entre 3 e 100 milhões – ainda assim, sabemos muito menos sobre as que já passaram pela Terra e que hoje estão extintas. Estima-se que o número de espécies que já esteve sobre o planeta é de até 10 bilhões! A maioria, no entanto, foi perdida para sempre, pois registros fósseis são muito limitados.

A biodiversidade, todavia, está sob constante risco devido às mudanças climáticas aos impactos ambientais promovidos pela espécie humana durante o Antropoceno. É necessário o desenvolvimento de ações que visem minimizar esses impactos, como o reconhecimento e estudo da biodiversidade pautados em estratégias em políticas de conservação. Assim, espera-se mitigar os efeitos a ação humana e a relação entre mudança climática e extinção de espécies.

Pessoa liberando tubarão-touro

O planejamento para lidar com esses impactos exige entender os processos que geraram essa diversidade no passado, pois esses deverão ser os mesmos processos que irão recompor perdas recentes e futuras. Desde a origem da vida, o planeta passou por grandes e constantes perturbações ambientais (como as alterações climáticas e eventos geológicos) as quais parecem ter maximizado o processo de formação de novas espécies. Dentre os modelos mais frequentemente associados com a formação de espécies, está o modelo alopátrico vicariante, ou especiação geográfica. Quando espécies de ampla distribuição são fragmentadas pelo aparecimento de barreiras, as subpopulações isoladas podem evoluir independentemente e gerar novas espécies a partir da espécie original ancestral. Todavia, apenas esse modelo parece não ser capaz de explicar a enorme diversidade de vida no planeta, passada e presente.

Rio Amazonas a partir do satélite Copernicus Sentinel-2A

As perturbações ambientais geradas na intensa dinâmica ambiental, ao longo da história evolutiva, influenciaram a permeabilidade de barreira ecológicas, ora isolando, ora permitindo a expansão de populações, gerando novas espécies em taxas elevadas através de um modelo conhecido como Pulso de Táxon. O modelo de diversificação denominado Pulso de Táxon, proposto por Erwin, em 1985, propõe que os ciclos de isolamento e expansão na distribuição de comunidades, associados à dinâmica ambiental do planeta, maximizam a formação de novas espécies (gráfico 1). As comunidades estruturadas dessa forma se tornam mosaicos complexos decorrentes da mistura de comunidades, proporcionada por episódios de expansões e isolamentos.

Barreiras ecológicas não representam apenas elementos geográficos (como montanhas e rios), mas também características ambientais as quais podem ser influenciadas pelas mudanças climáticas e atividades humanas. O Pulso de Táxon faz parte do Paradigma de Estocolmo, um esqueleto teórico que incorpora pressupostos que visam explicar a dinâmica ecológica e evolutiva das associações ecológicas e da vida no planeta.

Contraste entre os processos de Vicariância e Pulso de Táxon

Estudos recentes nas regiões litorâneas e em bacias hidrográficas de diversas partes do mundo, especialmente na costa Atlântica do Brasil, sugerem que o Pulso de Táxon foi fundamental na produção e composição da comunidade de peixes nas bacias costeiras e estuários. Bacias hidrográficas funcionam como ilhas para a maioria dos peixes de água doce, devido à limitação da dispersão de organismos dulcícolas pelo ambiente marinho e por terra. Além da possibilidade de conexões físicas entre rios, através de inundações, canais ou mesmo lagos, a variação histórica do nível do mar representa um processo cíclico que permite o contato ou o isolamento de comunidades de peixes de bacias vizinhas. Portanto, a diversidade e riqueza de peixes de bacias hidrográficas podem ser influenciadas por eventos eustáticos - como são denominadas as flutuações históricas do nível do mar. Essas flutuações, ao longo do tempo geológico, são fortes determinantes da distribuição íctica litorânea.

Encontro entre mar, rio com costa rochosa e praia

No Brasil, alguns estudos foram realizados para entender quais são os padrões de biodiversidade esperados a partir da influência das flutuações do nível do mar no passado e eventos de conexão ou isolamento. Em muitos desses trabalhos, no qual a diversidade genética é avaliada, espécies de peixes estritamente dulcícolas ou estuarinas apresentaram padrões de maior diversidade genética, onde há uma maior probabilidade de conexão de paleodrenagens entre bacias hidrográficas. Por exemplo, no sul do país, a diversidade genética das populações de peixes é maior comparadas com espécies localizadas ao nordeste, onde o isolamento parece ter sido constante no passado recente.

Outro exemplo ocorreu no final do Pleistoceno há, aproximadamente, 18 mil anos. Os peixes costeiros de água doce tiveram a oportunidade de se dispersarem em diferentes locais da costa através de conexões diretas de sistemas dulcícolas anteriormente isolados. Nessa época, conhecida como o Último Máximo Glacial (UMG), o nível do mar regrediu em -120m da costa (gráfico 2). A plataforma continental foi exposta e os rios drenaram em direção ao mar (ilustração 1). Essas drenagens sobre a plataforma exposta (paleodrenagens), representam extensões das bacias hidrográficas (território continental banhado por uma drenagem principal) as quais podem se unir formando megabacias (ilustração 1). Nesse cenário, ocorre uma mistura das comunidades de peixes das bacias envolvidas.

Gráfico de variações do nível do mar nos últimos milhares de anos
Representação de paleodrenagens

Com o aumento subsequente do nível do mar, as comunidades das bacias envolvidas ficam gradativamente mais isoladas e as espécies têm a oportunidade de diferenciar, pois não trocam material genético durante esse período. Ciclos repetidos de flutuação do nível mar geram ciclos de isolamento e expansão de comunidades e resultam em uma grande diversificação da comunidade íctica das bacias hidrográficas envolvidas. Esse é o processo de Pulso de Táxon.

Todavia, no litoral brasileiro, e provavelmente em outras regiões do mundo, a conexão entre bacias costeiras adjacentes depende, principalmente, da largura da plataforma continental. Quanto menor a extensão da plataforma continental, menor é a probabilidade de contato entre paleodrenagens de bacias hidrográficas distintas, pois há um menor espaço para o escoamento dos rios na plataforma (infográfico 1, D). Por outro lado, quando a extensão da plataforma continental é longa, maior é a probabilidade de contato entre paleodrenagens das bacias, pois há maior espaço para o escoamento dos rios ao longo da plataforma continental (infográfico 1, C). Como muitos peixes de água doce não sobrevivem em ambientes aquáticos com elevadas salinidades e dependem exclusivamente de conexões entre sistemas de drenagens dulcícolas, conexões entre rios adjacentes, a partir de paleodrenagens, permitiram a dispersão de peixes, que estavam anteriormente isolados em suas respectivas bacias.

Diferenças na largura da plataforma continental são observadas entre o litoral do Sur do Brasil (infográfico 1, A) em relação ao Nordeste do Brasil (infográfico 1, B). Nessas regiões, a amplitude espacial para dispersão e contato entre espécies de peixes costeiros é diferente, pois a partir da largura da plataforma, a extensão das paleodrenagens formadas durante períodos de baixo nível do mar se diferem. Rios de bacias mais ao sul, nos quais a largura da plataforma é maior, podem ser conectados com maior probabilidade por paleodrenagens, pois apresentam plataforma continental de maior extensão, aumentando a oportunidade de conexões entre essas drenagens (infográfico 1, C).

Plataforma continental ao longo da costa brasileira

Com base na batimetria atual, é possível estimar como as paleodrenagens se organizaram durante o UMG no passado e como foram estabelecidas as conexões entre as bacias distribuídas ao longo da costa brasileira (ilustração 1). A partir da reconstrução das paleodrenagens podemos estimar a conexão entre bacias costeiras no tempo e no espaço (ilustração 1, C e D).

A compreensão desse processo histórico pode auxiliar no entendimento de padrões de riqueza, endemismo e estrutura de comunidades. Sendo assim, observar como os eventos ecológicos e evolutivos históricos influenciam a biodiversidade atual é imprescindível na busca do entendimento dos padrões de formação de comunidades biológicas futuras, principalmente a partir de projeções de mudanças climáticas. A hipótese do Pulso de Táxon nos permite extrapolar como as interações dos organismos aquáticos oscilam no tempo.

Com o aumento do nível do mar provocado pelo aquecimento global, por exemplo, é esperado o isolamento de bacias e, consequentemente, perda substancial da diversidade genética e taxonômica de peixes costeiros. A oscilação entre isolamento e expansão das bacias hidrográficas é facilitada pelas crescentes modificações dos ambientes naturais e alterações climáticas. Assim, torna-se necessário discutir os possíveis efeitos destas alterações sobre a biodiversidade de peixes costeiros, principalmente a partir do isolamento destas comunidades esperado no futuro próximo.

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Para mais informações:

  1. Baggio, R. A., Stoiev, S. B., Spach, H. L., Boeger, W. A. Opportunity and taxon pulse: the central influence of coastal geomorphology on genetic diversification and endemism of strict estuarine species. Journal of Biogeography, 2017.
  2. Brooks, Daniel R., Hoberg, Eric P., Boeger, Walter A. The Stockholm paradigm: climate change and emerging disease. University of Chicago Press, 2019.
  3. Hoberg, Eric P., Brooks, Daniel R. Beyond vicariance: Integrating taxon pulses, ecological fitting and oscillation in evolution and historical biogeography. In: The Biogeography of Host–Parasite Interactions, 2010. Oxford University Press.
  4. Spratt, Rachel M., Lisiecki, Lorraine E. A late Pleistocene Sea level stack. Climate of the past, 2016.
  5. Thomaz, Andréa T., Knowles L. Lacey. Flowing into the unknown: inferred paleodrainages for studying the ichthyofauna of Brazilian coastal rivers. Neotropical Ichthyology, 2018.
  6. Wang, J., Church, J.A., Zhang, X. et al. Reconciling global mean and regional sea level change in projections and observations. Nature Communication, 2021.
  7. Martins, A. (2011). Calculan en 8,7 millones el número de especies del planeta. BBC News Mundo. Disponible en: https://www.bbc.com/mundo/noticias/2011/08/110824_especies_censo_am


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