No curso da história da humanidade, as doenças causaram impactos cruciais e moldaram nosso relacionamento social e com o mundo. Não precisamos voltar muito no tempo para exemplificar os efeitos causados por doenças em nossa sociedade, já que estamos vivendo uma transformação social, devido à pandemia por COVID-19. Com isso, é importante destacar que a maioria das epidemias que assolaram a humanidade surge de doenças chamadas de zoonoses.
As zoonoses emergem devido à interação do ser humano com outros animais, sejam domésticos ou selvagens. Há consenso no meio científico que cerca de 70% das doenças humanas conhecidas hoje são zoonoses. Mas o que doenças emergentes e zoonoses têm a ver com as florestas tropicais e a perda de biodiversidade?
Primeiro vamos lembrar um pouco sobre as interações que podem ocorrer entre os seres vivos. Essas interações acontecem dentro de um determinado tempo e espaço e vão se moldando, neste contexto, por vários fatores, como processos ambientais, distribuição e abundância das espécies e disponibilidade de recursos (alimento, espaço, etc.). Dentre as relações possíveis entre os seres vivos e o ambiente, a interação parasito-hospedeiro está por trás das infecções que podem evoluir em doenças.
Os parasitos são seres vivos que precisam de outros seres (hospedeiros) para sobreviverem e se reproduzirem, usufruindo de algum recurso de seu hospedeiro. Os parasitos são classificados em dois principais grupos: os microparasitos (como vírus, bactérias e protozoários); e os macroparasitos, geralmente denominados “vermes” (como lombrigas e solitárias). Vejam que nem sempre o parasito é responsável por desencadear uma doença, mas todo patógeno (organismo causador de doenças) é um parasito. Então, o que faz a relação parasito-hospedeiro se transformar em uma doença, que pode até levar o hospedeiro à morte? Se pensarmos bem, por que o parasito mataria seu hospedeiro se precisa dele para sobreviver?
As respostas para essas perguntas dependem de três outras questões: Qual a estratégia reprodutiva dessa espécie de parasito? Quais são os processos ambientais que regem a relação parasito-hospedeiro? Qual a relação coevolutiva entre as espécies?
Parasitos podem ser classificados em aqueles que causam impactos negativos significativos no seu hospedeiro, ou aqueles que não causam, os quais muitas vezes passam despercebidos por nós. O grau de patogenicidade e virulência de um parasito depende de uma relação complexa entre a estratégia de infecção e reprodução do patógeno versus a resposta imunológica do hospedeiro. Por exemplo, um parasito pode desencadear uma doença caso sua infecção leve à rápida morte de células/tecidos no hospedeiro. Em contra partida, outra espécie pode não causar tanto dano, mas estimular uma resposta imunológica (inflamatória) severa, que acaba por levar a uma série de alterações fisiológicas. Com o decorrer das gerações e com o processo de seleção natural, é atingido um equilíbrio entre ambas as forças atuantes, o que acarreta na diminuição dos impactos causados pelo parasito na população hospedeira.
Com isso, entramos no motivo de doenças emergentes constituírem um risco maior para a humanidade. Novas interações tendem a ser mais patogênicas porque ainda não foi atingido o equilíbrio pela seleção natural. Entretanto, devemos lembrar que uma interação entre organismos já conhecidos pode vir a se transformar em uma doença, caso haja algum desequilíbrio ambiental ou fisiológico. Por isso é importante sempre termos uma ideia da construção histórico-evolutiva entre um parasito e seu hospedeiro, mas não podemos deixar de analisar o contexto ecológico e demográfico de cada interação.
Florestas tropicais e doenças emergentes:
Muitas florestas tropicais são consideradas como hotspots de biodiversidade, ou seja, são áreas importantes para o meio ambiente e para a humanidade por possuírem grande diversidade de espécies. No entanto, as Florestas Tropicais têm sido cada vez mais degradadas. Dentre as causas que levam ao desmatamento, a expansão do setor agropecuário é uma das principais. Basicamente, ao trocar uma floresta por uma monocultura, estamos trocando milhares de espécies, muitas vezes endêmicas (específica de uma região), por apenas uma. Isso tende a diminuir ou anular a diversidade contida naquele ambiente. Com o aumento do desmatamento, intensifica-se a oportunidade de contato entre seres humanos e as mais diversas espécies de parasitos (possíveis patógenos), antes desconhecidos por nós. Somado a isto, a extirpação de espécies, outra consequência do desmatamento, pode levar a diminuição de hospedeiros disponíveis, possibilitando assim a troca e disseminação dos parasitos para outras espécies.
De fato, a extinção/extirpação de uma espécie nem sempre se equivale à extinção de seus parasitos. A maioria desses consegue se manter ao se adaptar a um novo hospedeiro. A troca de hospedeiros é um processo que passa por três estágios principais: oportunidade, compatibilidade e coadaptação. Situações que permitem maior probabilidade de infecção, como agrupamento de espécies evolutivamente próximas, possibilitam oportunidades de contato com espécies provavelmente compatíveis. Por exemplo, a combinação de ambientes urbanos, a constante invasão e destruição de florestas e o consumo elevado de carne animal compõe a receita perfeita para a propagação de doenças emergentes.
De acordo com a IUCN (União Internacional para Conservação da Natureza), mais de 32 mil espécies encontram-se em risco de extinção, sendo que destas, 26% são mamíferos.
Até 13 de setembro de 2020, mais de 32.000 espécies estão em risco de extinção segundo iucnredlist.org. Em outras palavras, 27 % do total de espécies avaliadas até o momento estão ameaçadas.
Muitas das zoonoses são adquiridas pelo contato com outros mamíferos, como o caso da troca de patógenos entre humanos e primatas, que já resultou em diversas epidemias que assolaram a humanidade, como a Malária, Dengue, Febre Amarela e AIDS.
O aumento da densidade populacional humana e expansão da área urbana, a caça, a venda de animais selvagens, intensificação da agropecuária, introdução de espécies e desmatamento são fatores que aumentam a probabilidade de infecção de novos patógenos em humanos, por meio do contato direto com o parasito, ou indireto por vetores ou espécies reservatório da doença. Esse é o caso do vírus da SARS (Síndrome Respiratória Aguda Grave), que provavelmente passou aos humanos devido ao comércio de animais selvagens, ou do vírus da Ebola, cujo surgimento é associado à caça, desmatamento e exploração de madeira.
A introdução de espécies é outro meio de propagação de novos parasitos e potenciais doenças emergentes. Esse é o caso do vírus da Dengue, que foi introduzida no Brasil juntamente com seu vetor, o mosquito Aedes aegypti, nativo da África. Outra possibilidade é a disseminação de parasitos nativos pela espécie introduzida, quando esta age como reservatório da doença. De fato, espécies reservatório são responsáveis por aumentar a prevalência e a probabilidade de epidemias no local. Um exemplo clássico é o do rato-doméstico, Rattus rattus, que é reservatório de várias doenças, como a Leptospirose e a Peste bubônica.
Estes fatores tornam as regiões tropicais não somente hotspots da biodiversidade, mas também hotspots globais do surgimento de doenças emergentes. A crescente destruição das florestas tropicais leva a perda da nossa biodiversidade e consequente aumento do contato e infecção por zoonoses antes desconhecidas, completando assim a tríade de eventos que resultam nas mais diversas doenças emergentes.
Sentimos na pele como uma pandemia pode impactar nossa vida, além dos sistemas sociais e econômicos, desestabilizando toda nossa estrutura social. O risco da eminência de novas doenças é silencioso, mas não desconhecido, e é o resultado de muitas ações que já são prejudiciais para o meio ambiente e bem viver. O desequilíbrio ambiental não traz só a extinção de espécies e perda de serviços ecossistêmicos, mas também o aumento do advento de novas epidemias. Isto só reforça a necessidade da luta pela manutenção e conservação das florestas tropicais e de sua biodiversidade.
Para saber mais sobre a relação de florestas tropicais e zoonoses:
- Toph Allen et al. 2017. Global hotspots and correlates of emerging zoonotic diseases. Nature Communications 8, 1–10. https://doi.org/10.1038/s41467-017-00923-8
- Eléonore Hellard et al. 2015. Parasite-Parasite Interactions in the Wild: How To Detect Them? Trends in Parasitology 31, 640–652. https://doi.org/10.1016/j.pt.2015.07.005
- Bruce A. Wilcox e Ellis B. 2006. Forests and emerging infectious diseases of humans. Unasylva 57, 11–18.
- Nathan D. Wolfe et al. 2007. Origins of major human infectious diseases. Nature 447, 279–283. https://doi.org/10.1038/nature05775
- Possas C. et al. (2018). Yellow fever outbreak in Brazil: the puzzle of rapid viral spread and challenges for immunisation. Memorias do Instituto Oswaldo Cruz 113. https://doi.org/10.1590/0074-02760180278
Para entender um pouco mais sobre a troca de hospedeiros:
- Sabrina B. L. Araujo et al. 2015. Undestanding host-switching by ecological fitting. Plos One 10, 1–17. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0139225
- Rebecca Benmayor et al. 2009. Host Mixing and Disease Emergence. Current Biology 19, 764–767. https://doi.org/10.1016/j.cub.2009.03.023
- Casadevall A. & Pirofski L.A. (1999). Host-pathogen interactions: Redefining the basic concepts of virulence and pathogenicity. Infection and Immunity 67, 3703–3713. https://doi.org/10.1128/iai.67.8.3703-3713.1999
- Fernando D. A. Pires. 1989. Zoonoses: Hospedeiros e Reservatórios. Cadernos de Saúde Pública, 5, 82-97.
Sobre a relação de doenças emergentes, perda de diversidade e invasões biológicas:
- Kayleigh Chalkowski et al. 2018. Parasite Ecology of Invasive Species: Conceptual Framework and New Hypotheses. Trends in Parasitology 34, 655–663. https://doi.org/10.1016/j.pt.2018.05.008
- Bryony A. Jones et al. 2013. Zoonosis emergence linked to agricultural intensification and environmental change. Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America 110, 8399–8404. https://doi.org/10.1073/pnas.1208059110
- Melaine J. Hatcher et al. 2012. Disease emergence and invasions. Functional Ecology 26, 1275–1287. https://doi.org/10.1111/j.1365-2435.2012.02031.x
- Sandra Telfer e Kevin Bown. 2012. The effects of invasion on parasite dynamics and communities. Functional Ecology 26, 1288–1299. https://doi.org/10.1111/j.1365-2435.2012.02049.x