As mudanças climáticas são um fenômeno real e em progresso, que tendem a afetar drasticamente os ambientes aquáticos e suas espécies devido ao aumento da temperatura e alterações nos regimes de chuvas. Isso é preocupante porque esses ecossistemas abrigam várias espécies de animais e plantas e fornecem importantes bens e serviços aos humanos, como a produção de água e alimentos, ciclagem de nutrientes e atividades de recreação.
Os peixes, por exemplo, são organismos que possuem elevada importância nos ecossistemas que habitam e são comumente utilizados como fonte de alimento e de renda pelos humanos. Contudo, muitas espécies de peixes tendem a entrar em processo de extinção nos próximos anos em decorrência das mudanças climáticas, uma vez que esses organismos são altamente sensíveis às variações ambientais. Isso é especialmente importante para os peixes migradores, que nadam centenas de quilômetros contra a correnteza para sua reprodução, no período conhecido como piracema. Para esses peixes, a formação de cardumes, migração, desova e desenvolvimento das fases iniciais (de ovos e alevinos até juvenis) são intimamente relacionados à temperatura, chuva e nível das águas.
O Dourado (Figura 1) é um peixe migrador nativo da bacia hidrográfica do rio da Prata (formada pelos rios Paraná, Paraguai e Uruguai, figura 2). Realiza grandes migrações todos os anos em busca de áreas adequadas para desova, chegando a percorrer distâncias de até 1.400 km. Devido ao seu grande tamanho corporal e à sua carne saborosa, o Dourado é a espécie de peixe mais apreciada em todas as modalidades de pesca na bacia. Além de sua importância econômica, ele desempenha importante papel no ecossistema. Por ser um predador de topo, o Dourado é capaz de controlar o número de indivíduos das populações de organismos dos diferentes níveis da cadeia alimentar aquática. Pela importância em manter o equilíbrio e diversidade das comunidades, essa espécie é considerada uma espécie-chave. Assim, investigar os possíveis efeitos das mudanças climáticas sobre o Dourado é essencial para que governantes e cientistas possam desenvolver em conjunto medidas para a conservação da espécie e das atividades econômicas que se beneficiam dela.
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Em nosso estudo, utilizamos modelos computacionais e matemáticos para simular os efeitos das mudanças climáticas sobre a ocorrência do Dourado na bacia do Prata. Nesses modelos, combinamos variáveis ambientais (temperatura, chuvas, altitude e fluxo dos rios) dos locais onde a espécie é capturada na bacia, com projeções dessas variáveis para os anos de 2050 e 2080, considerando diferentes concentrações de gases do efeito estufa na atmosfera, a fim de identificar as regiões potencialmente adequadas para a espécie no futuro.
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Os resultados do nosso estudo mostram que, no futuro, pode haver uma perda de mais de 60% das áreas com clima adequado para a ocorrência do Dourado na bacia do Prata – e que a ocorrência da espécie deverá ficar restrita a locais específicos, os quais são considerados refúgios climáticos para a espécie (Figura 3). As principais áreas de refúgio climático para o Dourado no fim deste século correspondem à região do alto rio Paraná, localizada no Brasil acima da região das antigas Sete Quedas, e à porção sul da bacia do Prata, a qual engloba regiões do norte da Argentina e sul do Uruguai.
Além das mudanças climáticas, a espécie está sujeita ainda aos impactos negativos dos inúmeros reservatórios de usinas hidrelétricas presentes na bacia do Prata. As barragens desses reservatórios constituem obstáculos que dificultam ou até mesmo impedem a migração anual dos peixes para reprodução, prejudicando a desova de muitas espécies. Assim, por diminuir as áreas adequadas em uma paisagem cada vez mais fragmentada por barragens, as mudanças climáticas impactam negativamente a conservação do Dourado na bacia do rio da Prata.
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Desse modo, sugerimos que as regiões de refúgio climático sejam foco de medidas para conservação da espécie. Ações preventivas diretas podem envolver o controle da pesca, a manutenção de rios livres de barragens nas regiões de refúgio e a inclusão dos mesmos em sistemas de unidades de conservação para proteção de suas condições ambientais. Considerando que a bacia do Prata abrange o Brasil, o Uruguai, a Bolívia, o Paraguai e a Argentina, acreditamos que ações conjuntas entre esses países devam ser adotadas para a efetividade das medidas de conservação.
Artigo original disponível em: https://link.springer.com/article/10.1007/s10750-019-3904-0