Não é de hoje que o governo brasileiro quer que compremos a ideia da aquicultura de espécies exóticas. Desde 2003, com a criação da Secretaria Especial de Pesca e Aquicultura, a pauta do cultivo de peixes no país foi tomando cada vez mais força à medida que os estoques pesqueiros foram diminuindo.
Recentemente a discussão voltou à tona. O atual Presidente da República e o Secretário de Aquicultura e Pesca alegaram que o Brasil precisa explorar o “mar de água doce” de Itaipu para cultivar tilápia2. A isso se soma a suposta “desburocratização” do processo de cessão de águas da União para aquicultura3.
É fato que a aquicultura pode ser uma ótima alternativa de produção de proteína animal, por isso vem crescendo rapidamente no Brasil e no mundo nos últimos anos4. Contudo, da maneira como é feita em nosso país, essa prática está longe de ser sustentável5. Isso principalmente porque é dependente de espécies exóticas, ou seja, nativas de outras bacias hidrográficas, países ou continentes6.
O caso mais conhecido, claro, é o da tilápia do Nilo (Oreochromis niloticus), a espécie mais cultivada e consumida no Brasil atualmente7. Como o próprio nome diz, é um peixe natural da bacia do rio Nilo, no continente africano, portanto, exótica em toda a América.
É claro que há um motivo para a tilápia ser tão popular para a aquicultura. Ela é altamente resistente às alterações ambientais, cresce e se reproduz rapidamente e, por isso, acaba sendo ideal para o cultivo intensivo: grande quantidade de peixes em pouco espaço. O problema é que essas características são precisamente as que a tornam uma espécie com alto potencial invasor.
Isso quer dizer que, uma vez que as tilápias escapam dos cultivos, elas se estabelecem na natureza e multiplicam, tornando-as um tipo de praga aquática de difícil controle. Além disso, o cultivo intensivo destes organismos em tanques-rede pode causar inúmeras alterações ambientais, como o crescimento de algas tóxicas devido ao aumento da quantidade de nutrientes na água (restos de ração e excretas dos peixes), a transmissão de doenças para a fauna nativa e a associação de outras espécies invasoras, como incrustações de mexilhão dourado que causam prejuízos ao produtor.
Apesar da vasta evidência que demonstra o impacto da tilápia no ambiente natural no mundo todo, inclusive no Brasil8, o governo brasileiro insiste em afirmar que ela não é capaz de se estabelecer em reservatórios devido à profundidade típica destes ambientes e presença de predadores2. Assim, a produção de tilápia continua crescendo e sendo cada vez mais incentivada, mesmo quando o país se comprometeu em agendas globais para erradicação de espécies exóticas9.
No Brasil, os políticos e tomadores de decisão sempre apostam em soluções milagrosas para o desenvolvimento econômico
Uma das justificativas do governo para o incentivo à criação de tilápia em reservatórios é a geração de emprego e renda. Mas, infelizmente, essa não é bem a realidade. Apenas os grandes produtores que detém a tecnologia necessária para produção em grande escala é que se beneficiam. As comunidades ribeirinhas, que muitas vezes já são prejudicadas pelo próprio empreendimento das barragens, não dispõem de conhecimento técnico e nem financiamento para implementar essa atividade. Nesses casos, a produção é feita de forma praticamente amadora e não se sustenta por muito tempo5. Até mesmo em cultivos de larga escala, a geração de empregos diretos e indiretos é pequena, sendo que a relação custo ambiental e benefício socioeconômico fica desequilibrada.
No Brasil, os políticos e tomadores de decisão sempre apostam em soluções milagrosas para o desenvolvimento econômico, importando tecnologias de outros países que na maioria das vezes não são viáveis aqui. Exemplos disso foram as introduções do caramujo africano para a produção do “escargot brasileiro”, do javali para a caça esportiva e recentemente do peixe asiático panga para aquicultura, espécies que causaram, e causam, diversos danos ecológicos e econômicos ao país.
Ironicamente, somos um dos países mais diversos do mundo e possuímos a maior riqueza de espécies de peixes de água doce, o que significa uma ampla gama de opções para consumo que podem ser exploradas e que muitas pessoas nem mesmo conhecem10.
Será que um país tão diverso como o Brasil precisa depender quase que completamente de espécies importadas para se desenvolver economicamente? Não estamos perdendo uma ótima oportunidade de valorizar nossa biodiversidade e culturalidade criando valor agregado a produtos nacionais?
O papel do governo nesse cenário deveria ser o de defender nossa riqueza, incentivando e possibilitando uma aquicultura sustentável baseada em espécies nativas. Só assim poderemos de fato alcançar a soberania alimentar: ter o poder de escolha sobre o que comemos, com uma maior disponibilidade de sabores e texturas; e principalmente, com a valorização de produtos regionais. Ou então, lamentavelmente, as próximas gerações só terão tilápia para colocar no prato.
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Para mais informações:
- ‘Reforma aquária’ de Lula, como é que é? 2010. Disponível em: https://marsemfim.com.br/reforma-aquaria-de-lula/
- Bolsonaro quer criar tilápia em Itaipu. 2020. Disponível em: https://istoe.com.br/bolsonaro-quer-criar-tilapia-em-itaipu/
- Decreto desburocratiza criação de peixes em águas da União. 2020. Disponível em: https://www.gov.br/agricultura/pt-br/assuntos/noticias/decreto-desburocratiza-criacao-de-peixes-em-aguas-da-uniao
- FAO. 2020. FAO yearbook. Fishery and Aquaculture Statistics 2018. Roma.
- Wagner C. Valentini et al. 2021. Aquaculture in Brazil: past, present and future. Aquaculture Reports 19, 100611.
- Thiago V. T. Occhi et al. 2020. O pecado do não saber: Como os impactos ecológicos das espécies exóticas invasoras influenciam nosso dia a dia. Bioika 5, 1–8.
- IBGE. 2020. Pesquisa da Pecuária Municipal 2018-2019. Rio de Janeiro.
- André B. Nobile et al. 2020. Status and recommendations for sustainable freshwater aquaculture in Brazil. Reviews in Aquaculture 12, 1495–1517.
- Convenção Sobre Diversidade Biológica. 2020. Disponível em: https://www.gov.br/mma/pt-br/assuntos/biodiversidade/convencao-sobre-diversidade-biologica
- Julian D. Olden et al. 2020. There's more to fish than just food: Exploring the diverse ways that fish contribute to human society. Fisheries Magazine 45, 453-464.