O efeito estufa é um fenômeno natural, no qual os gases que compõem a atmosfera retêm parte da energia solar que chega à Terra, aquecendo-a, resultando em uma temperatura adequada à vida. As atividades humanas, principalmente a queima de combustíveis fósseis (petróleo, carvão e gás natural), agricultura, desmatamento e poluição, aumentam os gases de efeito estufa (principalmente o gás carbônico) na atmosfera. O aumento desses gases gera maior retenção de energia solar na atmosfera, com consequente aumento da temperatura do nosso planeta, causando o que conhecemos como aquecimento global. Já tivemos outros períodos de aquecimento e resfriamento na Terra, mas nunca em uma velocidade tão grande como agora.
O aquecimento global tem efeitos sobre todo o clima da Terra, alterando além dos padrões de temperatura, os padrões de precipitação (neve, chuva, granizo), as correntes oceânicas, a frequência de ocorrência de eventos extremos de cheias, secas, queimadas, furacões, derretimento de geleiras, aumento do nível do mar, dentre outros. Essas alterações decorrentes do aquecimento global constituem-se nas Mudanças Climáticas Globais, as quais já têm sido percebidas em maior ou menor intensidade em todo o globo.
Estudos conduzidos pela NASA (Administração Nacional da Aeronáutica e Espaço dos Estados Unidos) e divulgados este ano revelam que a temperatura da Terra aumentou em média 0,9ºC no último século em relação à temperatura média do período anterior à Revolução Industrial, e que os últimos dez anos foram os mais quentes da história. Ainda que pareça sutil, a intensificação do processo de mudança do clima tem provocado várias consequências ambientais e uma das consequências mais debatidas relaciona-se aos efeitos sobre a biodiversidade global.
A biodiversidade pode ser afetada pelas mudanças climáticas de diferentes maneiras. Impactos sobre as espécies na natureza incluem mudanças na distribuição (área na qual ocorrem) e na abundância (número de indivíduos, por exemplo). Podem afetar ainda eventos do ciclo de vida como período de reprodução, uso de habitat e comportamento, podendo ainda romper interações ecológicas importantes como as relações entre presa e predador, polinizador e planta, para citar algumas.
Os peixes de água doce constituem um dos grupos mais impactados pelas mudanças climáticas, principalmente porque eles dependem de temperaturas e chuvas bem definidas ao longo do ano para a manutenção de seus ritmos sazonais e para que seus processos de migração e reprodução não sejam prejudicados. Ainda, ao contrário de muitos mamíferos e aves que possuem grande capacidade de dispersão, os peixes, mesmo aqueles migradores como o dourado, pintado e curimba, apresentam dispersão restrita aos trechos contínuos nos limites das bacias hidrográficas de onde ocorrem, o que não lhes permite buscar outras bacias se as condições ambientais adequadas deixarem de existir. Diante dessas características, os peixes de água doce são bastante susceptíveis aos efeitos negativos das mudanças climáticas.
As ameaças que as mudanças climáticas impõem aos peixes de água doce são muito preocupantes do ponto de vista da conservação das espécies, especialmente se considerado que estes animais já são seriamente impactados pelas ações antrópicas. Os humanos têm se apropriado de mais de 50% da água doce disponível no mundo e a poluição, o desmatamento e o aumento no número de represamentos, têm impactado as bacias hidrográficas, com efeitos diretos sobre os peixes.
Diante deste cenário, é fundamental o desenvolvimento de estudos que investiguem os efeitos das alterações climáticas sobre os peixes para que medidas de conservação possam ser adequadamente propostas. Neste sentido, o Núcleo de Pesquisas em Limnologia, Ictiologia e Aquicultura (Nupélia) da Universidade Estadual de Maringá desenvolveu o projeto de pesquisa “Efeitos das mudanças climáticas sobre a distribuição de peixes da bacia Paraná-Paraguai” financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) no intuito de identificar as áreas que tendem a ter climas adequados para as espécies de peixes no futuro, para então conservá-las. Nesta pesquisa, foram utilizados modelos computacionais, conhecidos como modelos de distribuição de espécies (MDE), que se baseiam nos dados ambientais (temperatura, precipitação, altitude e disponibilidade de água) dos locais onde as espécies de peixes foram registradas no tempo atual. Através destes modelos é possível prever para tempos futuros quais locais apresentarão características ambientais semelhantes àquelas do presente e desta forma serem considerados como adequados à sobrevivência das espécies. Para prever a área de ocorrência das espécies no futuro, foram usados modelos climáticos elaborados por climatólogos que estimaram o grau de variação climática no futuro. Com base nesses modelos é possível, por exemplo, conhecer quais as regiões que a temperatura deverá aumentar ou diminuir, bem como se haverá regiões onde as chuvas ficarão mais abundantes ou escassas. Neste estudo, as projeções futuras foram realizadas para os anos de 2050 e 2080, considerando cenários otimistas e pessimistas de mudanças climáticas.
Abrangendo territórios do Brasil, Paraguai, Bolívia e Argentina, a bacia Paraná-Paraguai destaca-se por ser a segunda maior bacia do continente Sul Americano e por possuir elevada riqueza de peixes (mais de 600 espécies). É importante destacar que a bacia Paraná-Paraguai (especialmente a porção do alto rio Paraná, a qual corresponde à área de drenagem acima das antigas Sete Quedas inundadas pelo reservatório de Itaipu) é considerada a mais impactada do Brasil, devido ao desmatamento, poluição, e fragmentação por uma grande quantidade de reservatórios. Em relação aos últimos, a Agência Nacional de Energia Elétrica do Brasil (ANEEL) aponta 1.358 empreendimentos hidrelétricos de pequeno a grande porte presentes no território brasileiro da bacia Paraná-Paraguai. Aliado a isso, a bacia é alvo constante da introdução de espécies exóticas, espécies estas originárias de outros continentes (ex. carpas originárias da Europa e Ásia e tilápias originárias da África) e de outras bacias sul-americanas (ex. tucunarés originários da bacia Amazônica) que impactam os peixes nativos da bacia principalmente pela intensa predação e competição por alimento. Diante disso, fica evidente a necessidade de que sejam realizados nesta bacia estudos que investiguem os impactos adicionais aos peixes em virtude das mudanças climáticas para que medidas protetivas mais eficientes possam ser tomadas para a conservação das espécies.
Os pesquisadores identificaram que, na bacia Paraná-Paraguai, 40 espécies de peixes poderão se tornar extintas até o final do século devido à perda total das áreas com clima adequado para sua ocorrência. Cinco destas espécies já são atualmente ameaçadas de extinção devido aos múltiplos impactos antrópicos, destacando-se o fato de que quatro são endêmicas do rio Iguaçu, ou seja, não ocorrem em mais nenhum outro lugar do mundo. O estudo ainda mostrou que principalmente os rios da margem esquerda da porção do alto rio Paraná (Tietê, Aguapeí e Peixe no estado de São Paulo, Paranapanema na divisa SP-PR e Ivaí no estado do Paraná) deverão se tornar altamente adequados para as espécies no futuro em relação ao clima, funcionando como os principais refúgios climáticos (áreas favoráveis) em cenários de mudanças no clima. No entanto, os rios com muitos barramentos como é o caso do Tietê e Paranapanema, são menos eficientes do ponto de vista de conservação devido ao impacto que reservatórios provocam. Eles mudam o que antes era um rio para um grande lago artificial, controlando o fluxo de água, ou seja, a quantidade de água que será liberada abaixo da barragem, e todas as outras características originais tanto de qualidade da água quanto de espécies que ali habitavam. Assim, rios livres de barramentos dentro das áreas de refúgio climático como é o caso do rio Ivaí e Piquiri são focais para medidas de conservação, sendo fundamental a manutenção de suas características originais.
Este estudo é inovador, sendo um dos primeiros no Brasil a investigar os impactos das mudanças climáticas sobre a distribuição de peixes de água doce em grandes escalas espaciais. Sobretudo, a principal contribuição desta pesquisa foi a definição de áreas de refúgio climático na bacia Paraná-Paraguai, informação útil para auxiliar na tomada de decisões para o manejo sustentável da bacia e para elaboração de políticas públicas imprescindíveis para a conservação da biodiversidade aquática.