A vida surgiu na água e da água... evoluiu em ecossistemas aquáticos e partiu para além... conquistou continentes, mas não inventou meios de subsistir sem ela. Por isso, todos os organismos inventaram mecanismos fisiológicos ou metabólicos para economizar e preservar água em sua estrutura – alguns o fazem de maneira fascinante. As plantas, por exemplo, desenvolveram um sofisticado sistema de comportas, os estômatos, que regulam a evaporação da água pelas folhas. Algumas espécies de peixes, embora obrigatoriamente aquáticas, desenvolveram ovos de resistência ou casulos herméticos que estivam no solo seco de lagos sazonais. Famosos também são pequenos roedores de ambientes áridos, capazes de passar a vida sem beber água – retiram-na do alimento. Ou os seres humanos, que constroem represas, tanques, canais, poços e estações de tratamento, purificação e dessalinização. A verdade é que, neste planeta, nenhum organismo vive sem água.
Falar em água pode soar genérico, pois existe água doce, salgada, salobra, congelada, em vapor... aqui, entretanto, me refiro a combinação entre átomos de oxigênio e hidrogênio no seu estado líquido e com baixa concentração de sais – o que popularmente chamamos de água doce. É dela que nenhum organismo vive sem, nem mesmo os marinhos, que desenvolveram mecanismos específicos para lidar com altas concentrações de sal. Se a vida é altamente dependente da água doce, curioso é o fato desse recurso ser muito escasso no planeta – presente basicamente nas chuvas, lagos, rios e aquíferos. Juntos somam menos de 1% de toda a água disponível no planeta, já que o restante se encontra salgada ou na forma de gelo. Um recurso tão raro e necessário (água) para algo tão abundante (vida). Bem paradoxal, mas um paradoxo que moldou a evolução das espécies... e deveria ter ensinado algo à espécie mais inteligente: nós mesmos, Homo sapiens.
…no mundo real dos seres vivos, onde se nasce, sofre e morre, a água doce sempre foi rara, necessária e insubstituível.
Fernando Mayer Pelicice
Qualquer ser humano sabe que sua própria existência depende da água, pois todos sentimos sede. Nas plantas e animais a necessidade se manifesta em nível fisiológico, mas em nós a dependência pela água é muito mais profunda, diversa e cultural. Desde tempos remotos, a água tem participado na provisão de recursos naturais (pesca, frutas, madeira, caça), condução de atividades domésticas (limpeza, higiene, recreação), transporte (navegação) ou produção (agropecuária e indústria). A presença da água na história humana é tão marcante que a própria Filosofia, mãe da Ciência, nasceu como uma supervalorização da água. Tales de Mileto, primeiro dos filósofos do ocidente, deu início à Filosofia (século VII a.C.) quando indagou sobre o elemento primordial da matéria. Sua resposta: ÁGUA... tudo era feito de água (Figura 1). Curiosamente, a hipótese de Tales, aprimorada por outros gregos antigos, permaneceu firme por mais de 2.000 anos. Caiu, em parte, com Antoinne Lavoisier (século XVIII), que “descobriu” o oxigênio e propôs que a água era um composto, e não um elemento. Talvez tenha sido um rebaixamento, mas apenas abstrato; no mundo real dos seres vivos, onde se nasce, sofre e morre, a água doce sempre foi rara, necessária e insubstituível.
Déficit de abastecimento é uma realidade que a humanidade conviveu, principalmente porque muitos povos construíram sua história em locais de elevada aridez (planícies africanas, Oriente Médio). Se a água doce é escassa, incerta e mal distribuída pelo planeta, assim ela se apresenta aos seres humanos. É provável que todas as culturas tenham convivido com problemas de abastecimento em algum momento de seu percurso, por razões diferentes, seja por dificuldade de captação, carência ou mudanças climáticas. Mas é bem provável que as culturas tenham de alguma forma se resolvido ou aliviado os problemas. Não por acaso, as primeiras civilizações surgiram ao lado de grandes rios (Nilo, Indo, Tigre, Eufrates). Além disso, o intelecto humano sempre se empenhou em maravilhas da engenharia: os egípcios fizeram canais e diques, os Romanos construíram aquedutos, os medievais cavaram poços, tanques e represas. Nós, modernos, realizamos proezas muito maiores, como já mencionadas: imensos reservatórios, redes de canais, poços, cisternas e estações de tratamento. Frente às variações espaço-temporais da disponibilidade hídrica, humanos têm sido inteligentes o bastante.
Mas nesse momento de apogeu cultural e conhecimento, existem muitas evidências de que enfrentaremos crises hídricas mais frequentes e graves do que nossos antepassados. A demanda por água potável cresceu notoriamente no século XX, como sombra da explosão demográfica, megalópoles, indústria e agricultura. Estimativas indicam que usamos mais de 60% de toda água doce superficial, a maior parte direcionada à agricultura. O aumento da demanda é, por si, um problema de alto pedigree e precisa de atenção. Mas o problema não é de demanda, apenas. Se fosse, a solução não seria das piores – bastaria equalizar a demanda pela oferta, consumir menos água do que a natureza oferece.
Fernando Mayer Pelicice
O agravamento de uma crise hídrica me parece muito mais real e preocupante do que outras ameaças mais famosas, como o aquecimento global.
Medidas de engenharia, gestão e racionamento poderiam garantir cotas seguras nos reservatórios. A gravidade da situação, entretanto, jaz nas mudanças que estamos causando no ciclo da água. A expansão das atividades humanas, em nível global, tem provocado a sistemática remoção da cobertura vegetal natural, além de alterar regimes fluviais, drenar e destruir várzeas, expor aquíferos, causar contaminações e acelerar mudanças climáticas. Esse conjunto de alterações, por sua vez, tem progressivamente afetado os processos que determinam padrões espaço-temporais de evaporação, precipitação, escoamento, infiltração, recarga e permanência da água nos rios, lagos e continentes. Já está mais do que claro, embora a sociedade ignore, que a disponibilidade hídrica em uma região é resultado da interação entre fatores climáticos (uma vocação) e o funcionamento dos ecossistemas naturais (uma circunstância), onde a biodiversidade tem papel central. Parece simples: menos ecossistemas naturais, menos água. Simples e verdadeiro, como diriam Califórnia, Nova Iorque, Cidade do México, Zaragoza, Barcelona, Pequim, Perth, São Paulo. O caso da região metropolitana de São Paulo é espetacular, pois abriga as nascentes do rio Tietê, no entanto, destruiu seus ecossistemas e, durante uma estiagem mais severa, ficou sem água. Medidas de engenharia hidráulica (i.e. mais reservatórios, transposição entre bacias) não consertarão esse cenário, e, pior, criarão a falsa impressão de que está tudo indo muito bem. Dessa conjuntura conclui-se que estamos comendo todos os ovos e a galinha também.
O agravamento de uma crise hídrica me parece muito mais real e preocupante do que outras ameaças mais famosas, como o aquecimento global. Os efeitos de uma crise hídrica se sucedem velozmente: acabariam com nossa economia, saúde e bem-estar imediatamente. Estranho é que as autoridades e a sociedade parecem despreocupadas. Veja a expansão brasileira do agronegócio e das hidrelétricas... glórias da economia, mas que assolam ecossistemas no Cerrado, Amazônia e nascentes das principais bacias hidrográficas do país.
Fernando Mayer Pelicice
Precisamos de uma nova espécie moral, o despertar do Homo novus
Precisamos de economia ou de água? Dos dois, óbvio, com o dogma de que o primeiro não existe sem o segundo. Mas nosso modelo é paradoxal: mais desenvolvimento, menos ecossistemas naturais. Menos ecossistemas, menos água. E menos água... bem, um macaco treinado completaria essa frase. Mas nenhum macaco saberia fazer projeções sobre água, escassez, demanda, economia, capital... nenhum ser vivo, além do Homo sapiens, sabe que organismos não sobrevivem sem água. O sapiens foi muito inteligente, mas pouco sábio. Precisamos de uma nova espécie moral, o despertar do Homo novus... afinal, a água doce não colore nosso planeta de azul, assim como o sonho de Tales, que via água em tudo, não era real.