E se os genes também ditassem as regras do comportamento social?

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Durante muito tempo, acreditou-se que nosso comportamento era moldado apenas pela criação e pelo ambiente. No entanto, estudos recentes sugerem que parte de quem somos também pode estar escrita nos nossos genes.



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Colmeia de abelhas Apis mellifera, uma espécie de inseto onde os indivíduos vivem em comunidades e existe uma divisão do trabalho e da atividade dentro da colmeia.

Os animais sociais costumam realizar atividades em conjunto, como a busca por alimento, o cuidado com a prole ou a proteção do ninho. Para alcançar essa coordenação, utilizam diversos mecanismos, como a comunicação entre indivíduos e formas de organização social que envolvem hierarquias de domínio e divisão do trabalho. A vida em sociedade geralmente é muito estruturada, e quase todas as atividades são influenciadas pelas interações com outros membros da comunidade.

Será que há algo em nossos genes que controla a forma como nos relacionamos com os outros? Nesse sentido, a sociogenômica surge como uma abordagem multidisciplinar que combina elementos da biologia molecular, genômica, neurociência, biologia do comportamento, biologia evolutiva e novas formas de bioinformática para entender as bases biológicas do comportamento social.

Falemos dos genes

Os genes podem ser considerados como os tijolos que constroem a molécula de DNA. Cada um deles tem a capacidade de armazenar a informação necessária para produzir diferentes tipos de proteínas. Sua descoberta remonta aos trabalhos pioneiros de Gregor Mendel entre 1856 e 1863, quando a molécula de DNA ainda não havia sido descoberta. Mendel cultivou e testou cerca de 28.000 plantas de ervilhas (Pisum sativum) e, com seu trabalho, deu origem ao que se conhece como as Leis da Herança ou Leis de Mendel. Essas leis explicam as regras básicas sobre a transmissão das características dos organismos progenitores para sua descendência

Isso significa, basicamente, que certas características como o tipo de cabelo (por exemplo, liso ou cacheado), as cores de uma flor ou a predisposição para desenvolver diabetes são determinadas pela expressão de um ou mais genes, que por sua vez são compostos por quatro nucleotídeos, também chamados de bases nitrogenadas. Dependendo da forma como são organizados e combinados, armazenam diferentes tipos de informação que a célula pode traduzir em diferentes variantes da mesma proteína. Por exemplo, os diferentes grupos sanguíneos (A, B, O ou AB) são definidos por variações do mesmo gene, chamadas alelos. Em muitos casos, mais de um gene age ao mesmo tempo para formar uma característica, como a cor dos olhos de uma pessoa, um fenômeno conhecido como herança poligênica (“herança de muitos genes”).

O conjunto de todas as variantes de genes que existem em todas as populações de uma espécie é conhecido como genoma. Nesse sentido, por exemplo, o genoma humano é composto por aproximadamente 20.000 genes distribuídos em 23 pares de cromossomos (que são formas condensadas de DNA dentro do núcleo de uma célula). A planta de batata possui cerca de 39.000 genes, e a bactéria Escherichia coli (causadora de doenças como a gastroenterite) tem cerca de 4.000 genes.

Esquema ADN no processo de sintetização de proteínas
A origem da sociogenômica

A sociogenômica surge como uma abordagem integradora dentro da biologia do comportamento, especialmente no estudo de insetos sociais como abelhas, formigas e cupins. Buscava-se entender como a expressão gênica está associada a comportamentos sociais complexos. Com o avanço da tecnologia, tornou-se mais acessível realizar estudos de sequenciamento genético, ou seja, mapear e identificar todos os genes que compõem o genoma de uma espécie.

O termo "sociogenômica" foi cunhado por Gene Robinson, um neuroetólogo (cientista que estuda como o cérebro e o sistema nervoso controlam o comportamento dos animais) que trabalha com abelhas melíferas (Apis mellifera). O termo foi usado pela primeira vez em 2002, quando Robinson publicou seu artigo "Genômica e análises integrativas da divisão do trabalho em colônias de abelhas". Neste artigo, Robinson propôs que os comportamentos sociais podem ser compreendidos por meio da análise de padrões dinâmicos de expressão gênica, combinando genética, neurobiologia e ecologia.

Por volta de 2010, a abordagem sociogenômica se expandiu para as ciências sociais e a sociologia. Embora sem um nome específico, esse enfoque já era utilizado há muito tempo. Com a popularização da sociogenômica, começou-se a explorar como a variação genética influencia comportamentos humanos complexos, como educação, religiosidade, orientações políticas e saúde mental. Com essa perspectiva, estabelece-se a ideia de que o comportamento humano não pode ser compreendido apenas sob uma ótica social ou genética, mas exige uma abordagem transdisciplinar que envolva biologia, genética, sociologia, psicologia e epidemiologia.

Aplicações da sociogenômica no estudo do comportamento animal

Uma das primeiras aplicações da sociogenômica foi o estudo do comportamento de insetos sociais na busca por alimento. Pesquisas realizadas com insetos não sociais, como a mosca-da-fruta (Drosophila melanogaster), revelaram conexões evolutivas com comportamentos sociais mais complexos em espécies como a abelha melífera (Apis mellifera).

Em particular, o gene foraging (for) e seu produto proteico regulam comportamentos como a busca por alimento e a idade de início dessa atividade. Na mosca-da-fruta, há duas variantes desse gene que determinam se algumas moscas serão mais exploradoras na busca por alimento, enquanto outras serão mais sedentárias.

Nas abelhas melíferas, esse mesmo gene é pouco expresso (menor quantidade de proteína) em abelhas jovens, o que faz com que se dediquem mais ao cuidado das larvas e à limpeza da colmeia. À medida que as abelhas envelhecem, a expressão desse gene aumenta (mais proteína), determinando que as abelhas adultas passem a buscar alimento fora da colmeia.

Outros estudos se concentraram na ativação gênica associada ao reconhecimento de parceiro e à comunicação social em aves, especialmente por meio do canto. Em muitas espécies de aves, os machos cantam para atrair fêmeas e defender territórios, influenciando diretamente seu sucesso reprodutivo. A produção e a percepção do canto possuem componentes tanto inatos (gravados nos genes) quanto aprendidos e estão ligadas a regiões cerebrais especializadas.

Curiosamente, o gene FOXP2, que se expressa em áreas do cérebro das aves dedicadas ao canto, também é conhecido por seu papel na fala humana. Essa semelhança sugere paralelos evolutivos entre os dois processos de comunicação.

Da mesma forma, estudos com tentilhões revelaram que ouvir cantos ativa genes como o zenk, um gene de resposta precoce envolvido no aprendizado e na memória, cuja expressão varia de acordo com a novidade do canto percebido. Ou seja, a ativação e expressão desse gene são mediadas pelo contexto social em que a ave se desenvolve. Esses achados posicionam o canto das aves como um modelo ideal para estudar a plasticidade neuronal mediada socialmente e abrem portas para a descoberta de mecanismos moleculares subjacentes à comunicação e ao aprendizado.

Os estudos socioecológicos também permitem vincular a determinação de castas em insetos sociais, como as formigas. A sociogenômica demonstra que a diferenciação entre operárias, soldados e rainhas resulta da interação entre fatores ambientais (como nutrição), sinais hormonais e expressão genética. Por exemplo, hoje sabemos que as larvas destinadas a se tornar rainhas apresentam uma maior expressão de genes relacionados à respiração, o que pode explicar sua maior taxa de crescimento e tamanho corporal.

Outros trabalhos com formigas carpinteiras (Camponotus floridanus) mostram que as larvas são geneticamente semelhantes; no entanto, o alimento que recebem e os feromônios liberadas pela rainha ativam ou desativam certos genes, produzindo mudanças na morfologia e no comportamento (fenótipo) na fase adulta, determinando se serão operárias ou soldados.

Além disso, estudos sobre a perda de asas em operárias revelaram que diversos genes do desenvolvimento das asas são inativados especificamente nessa casta. Muitos desses processos são mediados por mecanismos epigenéticos (mudanças no ambiente celular que afetam a expressão dos genes) e, por sua vez, são regulados pelo ambiente social (como alimentação das larvas, estresse ou cuidados parentais). No conjunto, esses achados destacam como a interação entre genes e ambiente regula a expressão genética durante o desenvolvimento, fornecendo pistas essenciais para compreender a evolução dos comportamentos sociais complexos.

Formiga carpinteira, Camponotus floridanus

Aplicações da sociogenômica no estudo do comportamento humano

O desenvolvimento da sociogenômica para explicar o comportamento humano teve um crescimento exponencial nas últimas décadas. As aplicações dos métodos genéticos quantitativos aos seres humanos se expandiram rapidamente a partir da década de 1970, tanto na medicina quanto por meio de uma nova especialidade, a genética comportamental.

Essa área busca quantificar a herdabilidade de características como traços de personalidade, atitudes sociais e transtornos mentais como a esquizofrenia, mas também a inteligência. Mais recentemente, outras disciplinas das ciências sociais passaram a estudar a herdabilidade dos traços comportamentais. Surgiram linhas de pesquisa em criminologia, ciência política e economia para investigar características tão diversas quanto a delinquência e o comportamento eleitoral.

Um dos avanços mais recentes no campo da sociogenômica é o uso do que chamamos de pontuações poligênicas (PGS). Essas pontuações, também conhecidas como índices de risco genético, permitem estimar como a combinação de muitas pequenas variações nos nossos genes pode influenciar certos traços de comportamento. Por exemplo, uma pessoa pode ter uma pontuação genética mais alta relacionada à facilidade de concentração, enquanto outra pode ter uma pontuação mais alta associada à sociabilidade ou à tendência de tomar decisões rápidas. Quando essas pontuações são aplicadas a temas como personalidade, empatia ou autocontrole, elas são chamadas de Índices de Comportamento Poligênico (ICP). Assim, alguém pode apresentar um ICP elevado relacionado ao autocontrole em situações de estresse, enquanto outra pessoa pode ter um ICP mais alto associado à curiosidade ou à abertura a novas experiências.

Hoje, aproximadamente 6.000 estudos já identificaram índices poligênicos para mais de 3.500 características, desde hábitos de sono até a dominância de uma mão (ser destro ou canhoto) ou a extroversão (quanto uma pessoa tende a ser sociável). Esses índices ainda não podem oferecer certezas, mas fornecem pistas intrigantes. Por exemplo, tomemos o ICP para o desempenho educacional, ou seja, até onde uma pessoa avança em sua formação acadêmica. Um estudo recente mostrou que, entre os adultos cujas pontuações estavam no décimo mais baixo nesse ICP, apenas 7% concluíram a universidade. Entre aqueles cujas pontuações estavam no décimo mais alto, esse número era de 71%.

Os genes, por si só, não são suficientes para determinar esses resultados, nem o ambiente em que a pessoa se desenvolve. Nesse caso específico do desempenho educacional, surgem perguntas que talvez venham a ser exploradas futuramente pela sociogenômica: como pode variar o peso relativo dos genes e do ambiente em contextos marcados por grandes desigualdades estruturais? O PGP para o desempenho educacional teria o mesmo poder de previsão em países onde o acesso à educação de qualidade é profundamente determinado pela origem social?

Esquema sobre a herenca do comportamento social para a variabilidade genetica

Sociogenômica e a hipótese do gene egoísta

Há uma hipótese usada para explicar o comportamento parental ou social dos animais, chama de “gene egoísta”. Essa hipótese foi proposta pela primeira vez por Richard Dawkins (um biólogo evolutivo britânico) em 1976 e estabelece que muitos comportamentos considerados "altruístas" (ou seja, que beneficiam outros indivíduos à custa de uma redução de recursos para quem os realiza) são, na verdade, uma estratégia evolutiva para garantir que os genes sejam transmitidos para a próxima geração.

Vamos usar um exemplo para ilustrar melhor. Algumas espécies de aves tropicais constroem ninhos de forma cooperativa, e o cuidado dos filhotes e sua alimentação são responsabilidade de todos os adultos do ninho, mesmo que alguns deles não tenham se reproduzido. Esse comportamento aumenta a probabilidade de os filhotes chegarem à fase adulta e, posteriormente, se reproduzirem, pois, ao terem vários adultos os protegendo dos predadores, ajudando na construção e manutenção do ninho e trazendo alimento, suas chances de sobrevivência são maiores.

Do ponto de vista do gene egoísta, a seleção natural (mecanismo da evolução proposto por Charles Darwin) age no nível dos genes, o que significa que o adulto que não se reproduz ainda assim garante que seus genes (compartilhados com outros indivíduos) sejam transmitidos à próxima geração, ao proteger as crias de seus parentes próximos, como irmãos ou primos.

Nesse sentido, a sociogenômica e a teoria do gene egoísta não são contraditórias, mas sim complementares. Enquanto a teoria do gene egoísta explica por que certos comportamentos sociais podem ter evoluído, a sociogenômica investiga como esses comportamentos sociais se manifestam no nível genético e molecular.

Esquema sociogenomica vs teoria do gene egoísta

Desafios e perspectivas da sociogenômica

Como vimos anteriormente, foram identificados genes que influenciam o comportamento social (como no caso das abelhas jovens que cuidam do ninho e das adultas que buscam alimento) e foi demonstrado como esse comportamento, por sua vez, pode afetar a função dos genes, determinando se eles serão mais ou menos expressos ou até mesmo não expressos (como no caso das asas em operárias de formigas).

O objetivo da sociogenômica é construir uma visão integrada que explique como a expressão gênica molda os circuitos neurais e os comportamentos sociais e como esses, consequentemente, influenciam a evolução dos genes.

No entanto, essa abordagem enfrenta vários desafios. Por um lado, a complexidade do comportamento social dificulta seu estudo em condições de laboratório controladas. Por outro, ainda é necessário ampliar os recursos moleculares disponíveis, como as bibliotecas genômicas, especialmente em espécies com comportamentos sociais relevantes, como formigas, cupins e abelhas.

Também é essencial avançar nos estudos de relações causais, realizando experimentos que permitam modificar a expressão de determinados genes e, assim, avaliar os efeitos no comportamento social do indivíduo. Sem dúvida, a sociogenômica é uma disciplina fascinante que ainda tem muito mais a ser descoberto.


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Para mais informações:

  1. Robinson GE. 2002. Genomics and integrative analyses of division of labor in honeybee colonies. Am Nat. 160 :S160-72.
  2. Martins. A. 2023. Genómica social, la controvertida herramienta que puede determinar si tienes propensión genética a rasgos como el estrés o la introversión. BBC News en: https://www.bbc.com/mundo/noticias-64825862
  3. Mills M.C, Tropf F.C. 2020. Sociology, Genetics, and the Coming of Age of Sociogenomics. Annu. Rev. Sociol. 46: 553–581.


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