Descobrindo os Picozoa: os enigmáticos habitantes dos oceanos

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Os picozoários são um grupo de protistas descoberto recentemente que, apesar de serem intimamente relacionados às plantas, perderam a capacidade de realizar fotossíntese durante sua história evolutiva.



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Os oceanos, fonte de vida e mistérios, inspiram uma grande variedade de histórias, contadas por seus habitantes e por atividades como a literatura ou a pesquisa. Juntas, essas narrativas revelam o profundo vínculo entre a curiosidade humana e a natureza da qual somos apenas uma pequena parte — assim como os microrganismos, imperceptíveis ao nosso olhar cotidiano.

Quando falamos de protistas, nos referimos a um conjunto heterogêneo de microrganismos eucariotos (aqueles organismos formados por células com núcleo definido e delimitado por uma membrana) que habitam quase todos os sistemas aquáticos do planeta. Alguns protistas são capazes de realizar fotossíntese, como as algas (também chamadas de protistas autótrofos, pois produzem seu próprio alimento a partir da fotossíntese), enquanto outros se alimentam de outros microrganismos ou de partículas em suspensão na água (os chamados protozoários ou protistas heterótrofos, que dependem dos recursos presentes no meio para sobreviver). Além disso, muitos protistas são parasitas de animais e plantas.

Nos sistemas aquáticos, os protistas heterótrofos desempenham funções muito importantes ao reciclar nutrientes e matéria orgânica, atuando como predadores de outros organismos, como bactérias e microalgas, e também servindo de alimento para pequenos invertebrados que habitam esses ecossistemas.

No entanto, quando falamos em protistas, não estamos nos referindo a uma única linhagem (grupo de organismos com uma história evolutiva comum), mas sim a muitas linhagens diferentes que, ao longo da evolução da vida, se diversificaram e hoje são grupos tão distintos que a única característica que compartilham é o fato de serem geralmente unicelulares, eucariotos e de não formarem tecidos como os animais ou as plantas.

Os Picozoa: um fascinante grupo de protozoários

Esse grupo de microrganismos foi descoberto há relativamente pouco tempo, no ano de 2007. Inicialmente, foram chamados de Picobiliphyta, pois se acreditava que, assim como as plantas e as algas, realizavam fotossíntese. Essa suposição baseava-se na observação de uma estrutura brilhante em seu interior, semelhante aos cloroplastos (organelas dentro das células eucariotas responsáveis pela fotossíntese) das plantas e algas.

Os Picozoa são um grupo de protistas heterótrofos que têm despertado o interesse de cientistas desde sua descoberta. Esses organismos são tão pequenos que se enquadram na categoria de picoplâncton, ou seja, medem entre 3 e 5 micrômetros (μm). Comparando com uma pulga (cujo menor tamanho pode chegar a 1 mm), esses organismos são entre 3 mil e 5 mil vezes menores.

Apesar do seu tamanho muito pequeno, quatro anos após sua descoberta, um estudante de doutorado da Universidade de Colônia (Alemanha) conseguiu isolar e cultivar células de Picobilipytas, permitindo que fossem estudadas com microscópios mais avançados. Foi então que houve uma virada crucial na identidade desses organismos: as imagens revelaram a ausência de organelas fotossintéticas (os cloroplastos), o que significava que eram organismos heterótrofos. Com essa descoberta, o nome Picobiliphyta foi abandonado e surgiu um novo: Picozoa. Esse nome reflete sua verdadeira natureza: pequenos predadores que habitam os oceanos, alimentando-se de outros microrganismos, possivelmente bactérias ou até vírus. "Pico", que significa "extremamente pequeno", e "zoa", do grego "zoon", que significa "animal", descrevem bem essas minúsculas criaturas.

E então, onde os Picozoa se encaixam na grande história evolutiva da vida?

A árvore da vida é uma representação gráfica das relações evolutivas entre todos os seres vivos, organizando os linhagens em diferentes grupos segundo seu parentesco evolutivo. Ou seja, os que são mais parecidos entre si são colocados em ramos próximos, enquanto os menos relacionados ficam em ramos distantes. Assim, podemos representar graficamente como a vida foi se diversificando ao longo de mais de 3 bilhões de anos até os dias atuais.

Ao longo da história, os sistemas de classificação da vida mudaram com o avanço do conhecimento científico. Inicialmente, essa classificação era baseada em características visíveis, como a forma e o modo de vida dos organismos, mas a biologia moderna, especialmente a genética, revolucionou nossa maneira de entender essas relações, revelando conexões inesperadas e redefinindo os grandes grupos da vida.

Árvore da vida de Darwin

Em 1751, por exemplo, Linnaeus propôs uma classificação baseada em três reinos: Animal, Vegetal e Mineral. Posteriormente, em 1969, Whittaker ampliou esse esquema para cinco reinos: Animal, Vegetal, Fungi, Protistas e Bactérias. Uma mudança mais profunda ocorreu em 1977, quando Woese e colaboradores propuseram a classificação em três domínios: Eukarya, Archaea e Bacteria. Já em tempos mais recentes, Adl e colaboradores, em 2021, introduziram uma classificação baseada em supergrupos. Por exemplo, os fungos aparecem como parentes distantes dos animais no grupo Opisthokonta, as plantas e alguns protistas autótrofos como as algas verdes estão incluídos em Archaeplastida, e outros protistas autótrofos e heterótrofos se distribuem em vários supergrupos, como Rhizaria (que inclui amebas com tecas ou carapaças protetoras) e Excavata (que inclui muitos protistas parasitas e alguns fotossintetizantes).

Representar graficamente as relações de parentesco entre toda essa imensidão de organismos não é uma tarefa fácil. Nos últimos anos, com o desenvolvimento e a redução dos custos das técnicas de sequenciamento genético, e com grandes avanços na Bioinformática, foi possível avançar nesse tipo de representação e construir uma imagem mais próxima da realidade do que chamamos de “árvore da vida”. Tanto que, em 2016, um cientista francês chamado Damien de Vienne desenvolveu e publicou o “Lifemap”. Nessa plataforma eletrônica, propõe-se uma representação única das relações evolutivas entre todas as espécies vivas da Terra, combinando métodos usados em cartografia moderna, como o OpenStreetMap, com uma nova forma de representar estruturas em árvore, permitindo mostrar entre 800 mil e 2,2 milhões de espécies (dependendo da base de dados utilizada) numa interface interativa e gratuita.

Mas voltando aos Picozoa, tema central deste texto, durante muitos anos os cientistas não sabiam onde posicioná-los dentro da árvore da vida. Eram um grupo “órfão”, uma linhagem única dentro do domínio Eukarya. No entanto, um estudo recente revelou que os Picozoa pertencem ao supergrupo Archaeplastida, que, como já dissemos, inclui organismos com cloroplastos, como as algas verdes, vermelhas e as plantas. Ainda assim, os Picozoa não têm cloroplastos, o que levanta a intrigante possibilidade de que possam ter sido um dos primeiros grupos a perder completamente essa capacidade. Essa descoberta os transformou num verdadeiro enigma evolutivo.
Sua biologia é diferente de qualquer outro organismo marinho conhecido, e ainda temos muitas perguntas sem resposta: como se alimentam? Qual é sua função nos ecossistemas marinhos? Ainda não temos respostas claras, mas acredita-se que esses pequenos predadores possam desempenhar um papel crucial na regulação dos microrganismos nos oceanos e no ciclo de nutrientes, já que são extremamente abundantes (com registros de até 80 mil indivíduos por litro).

Modelos de nicho como estratégia de estudo

Picomonas judraskeda

Diante desse quebra-cabeça evolutivo e ecológico, um grupo de pesquisadores da Universidade Federal de São Carlos (Brasil), do Instituto de Ciências do Mar (Espanha), da Universidade de Roma La Sapienza (Itália), da Universidade de York (Reino Unido), da Universidade Sorbonne (França) e da Federação de Pesquisa para o Estudo da Ecologia e Evolução dos Sistemas Oceânicos Globais (França) decidiu focar em estudar como os Picozoa se distribuem nos oceanos, quais são suas funções ecológicas e sua adaptabilidade a diferentes ambientes marinhos. Para isso, utilizamos dados de DNA e variáveis ambientais, analisados por meio de estudos filogenéticos (conjunto de técnicas genéticas que analisam as relações de parentesco a partir da comparação de sequências genéticas) e de modelos preditivos — também conhecidos como “modelos de nicho” — para criar mapas globais de distribuição desses organismos.

Atualmente, os modelos de nicho são usados para entender a distribuição no espaço e os requisitos ecológicos de animais e plantas. Ou seja, ajudam a identificar zonas geográficas de ocorrência ou condições ambientais ideais, como temperatura, luz solar ou disponibilidade de nutrientes. Nosso trabalho é um dos primeiros a aplicar essa abordagem a microrganismos como os Picozoa. Para isso, utilizamos dados de DNA coletados em várias partes do oceano e, com base em informações de satélites, dados ambientais como temperatura da água, salinidade e concentração de nutrientes. Com essas informações, criamos modelos de nicho cujos resultados podem ser visualizados em mapas. Esses mapas indicam onde é mais provável encontrar certas espécies, mesmo em locais onde ainda não coletamos amostras.

Como não temos dados de todas as regiões oceânicas, os modelos de nicho ajudam a prever onde uma espécie pode estar presente ou ausente com base nas condições oceanográficas. Assim, mesmo sem amostrar cada local, podemos ter uma boa ideia de onde encontrar determinadas espécies e entender melhor sua distribuição no oceano. Essa abordagem é importante porque o oceano é imenso, e monitorar todas as áreas diretamente é um enorme desafio.

Modelo de nicho

Nosso estudo revelou que os Picozoa são organismos exclusivamente marinhos, ausentes em ambientes de água doce ou solos. No oceano, estão entre os dez grupos eucariotos mais abundantes e mostram padrões distintos de distribuição influenciados pela latitude (distância angular entre um ponto da Terra e o Equador). Descobrimos, por exemplo, que algumas espécies estão adaptadas a ambientes polares, enquanto outras prosperam em regiões mais quentes, e algumas apresentam ampla distribuição. Surpreendentemente, também observamos que espécies estreitamente relacionadas nem sempre ocupam os mesmos nichos ecológicos, desafiando ideias tradicionais sobre a evolução das espécies e sua adaptação ao ambiente.

Em resumo, nosso trabalho mostrou que os Picozoa não são apenas abundantes nos oceanos, mas também mais adaptáveis do que imaginávamos. No entanto, apesar desses avanços, ainda há muito a ser descoberto. Que outros segredos guardam esses minúsculos predadores? Como afetam realmente os ecossistemas marinhos? Essa história está longe de terminar, e cada nova descoberta abre caminho para mais perguntas sobre a vida nos recantos mais diminutos do oceano.

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Para mais informações:

  1. de Vienne DM (2016) Lifemap: Exploring the Entire Tree of Life. PLOS Biology 14(12): e2001624
  2. Huber P. et al. 2024. Global distribution, diversity, and ecological niche of Picozoa, a widespread and enigmatic marine protist lineage. Microbiome 12: 162.
  3. Schön, M.E., Zlatogursky, V.V., Singh, R.P. et al. Single cell genomics reveals plastid-lacking Picozoa are close relatives of red algae. Nat Commun 12, 6651 (2021).
  4. Matos, M. H. O., Santana, L. O., Silva, G. A. L. 2024. Protozoarios planctónicos: ¿qué son, qué hacen y cuál es su importancia ecológica y para la sociedad? Revista Bioika, edición 11. Disponible en: http://revistabioika.org/es/ecovoces/post=145


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