Asas no asfalto: como as aves urbanas adoecem, se adaptam e resistem?

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O ruído e o concreto das cidades não apenas alteram o canto das aves: também afetam sua saúde e seu comportamento. Ainda assim, elas se adaptam para persistir nos espaços urbanos.



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“Vai voando, contornando a imensa curva, norte e sul...” — diz o passarinho que não leva nada nas asas além do vento. Mas, se pudesse cantar mais, contaria que para viver bem precisa de muito mais do que céu aberto: precisa de árvores, silêncio e natureza. Na cidade, o concreto, o ruído e a falta de verde tornam sua vida cada vez mais difícil. Na foto, um tico-tico (Zonotrichia capensis), espécie distribuída por grande parte do continente americano.

Quem vive nas grandes cidades conhece bem a necessidade de escapar do barulho, da poluição e da sobrecarga sensorial constante. Como bióloga, muitas vezes me pergunto se essa sensação também é vivida por outros animais — será que eles também esperam um dia poder migrar das cidades?

Apesar das condições difíceis que as cidades impõem à vida silvestre — com suas paisagens fragmentadas, concreto por todos os lados, níveis elevados de ruído e poluição —, continuamos observando uma considerável diversidade de espécies ao nosso redor, especialmente em parques e fragmentos de vegetação urbana. A biodiversidade resiste a desaparecer das cidades!

Papagaio no poste de luz

Mas e a saúde das espécies que vemos nas cidades? Assim como nós, essas espécies também adoecem ou se estressam com o ruído e a poluição? Como elas enfrentam os desafios impostos pelo ambiente urbano?

Essas questões são o ponto de partida para pesquisas em ecologia de doenças, um campo que busca entender como os animais respondem a ambientes alterados e quais são as consequências dessas mudanças em sua saúde. Elas também motivaram estudos que exploram diferentes dimensões da interação entre organismos e seu ambiente, incluindo o impacto da introdução de espécies exóticas e o risco de extinção associado a alterações na dinâmica parasita-hospedeiro-habitat.

Entre os organismos que resistem nas cidades, as aves ocupam um lugar de destaque. Sua alta diversidade, ampla distribuição e sensibilidade às transformações ambientais as tornam modelos ideais para estudar os efeitos do ambiente urbano na saúde da vida selvagem. Muitas espécies são capazes de tolerar ou se adaptar aos distúrbios desses ambientes, mantendo funções e estruturas ecológicas essenciais. Um exemplo disso é sua capacidade de manter populações relativamente estáveis ao longo do tempo, mesmo em paisagens fortemente modificadas.

Algumas aves urbanas, como pombos, rolas e pardais, desenvolveram tolerância ao ruído constante, ao tráfego de veículos e até à presença humana, ajustando seus horários de canto ou alimentação para evitar as horas de maior perturbação. Outros, como melros ou tordos, modificam sua dieta original e aproveitam os recursos alimentares de origem humana, como restos de comida ou insetos atraídos pelo lixo.

Além disso, certas espécies adaptaram seu comportamento reprodutivo ao ambiente urbano: nidificam em estruturas artificiais como postes, beirais, varandas ou cavidades de edifícios, substituindo árvores que não estão mais disponíveis. Essas estratégias permitem que eles continuem cumprindo seu papel ecológico como dispersores de sementes, controladores de insetos ou indicadores de qualidade ambiental, apesar das condições desfavoráveis.

Como as aves são estudadas?

Binóculos, cadernos e livros de identificação de espécies podem ser usados para o estudo de pássaros. Milhares de pessoas ao redor do mundo se dedicam à observação e ao registro de aves em diferentes regiões. No entanto, para analisar sua saúde, é necessário um pouco mais de trabalho. Precisamos capturá-los e estudá-los: coletar amostras de sangue, fezes, penas, microbiota (comunidade de microrganismos que vivem dentro e sobre o corpo de um organismo), medir e pesar espécimes, assim como um médico faria durante uma consulta clínica conosco. Só assim podemos obter uma visão completa do seu bem-estar e dos efeitos que o ambiente urbano tem na sua fisiologia e no risco de sofrer de uma doença.

Setophaga petechia

Malária aviária e seu papel na ecologia de doenças

Entre as doenças da vida selvagem mais estudadas globalmente por mais de um século, está a malária aviária: Plasmodium e gêneros relacionados, como Haemoproteus e Leucocytozoon. Estes provaram ser importantes formadores da diversidade e distribuição de seus hospedeiros, exercendo pressão seletiva constante sobre as populações1.

Em resposta, os hospedeiros devem adaptar seus sistemas imunológicos para sobreviver, desencadeando uma corrida evolutiva contínua: enquanto os hospedeiros desenvolvem defesas para resistir à infecção, os parasitas desenvolvem novas estratégias para evitá-los. Esse processo dinâmico é conhecido como hipótese da Rainha Vermelha.

Essas doenças são naturais e fazem parte da história evolutiva de muitas espécies, pois coevoluíram com seus hospedeiros por milhões de anos. No entanto, alterações ambientais e declínios populacionais devido a pressões produzidas por atividades humanas, têm efeitos importantes sobre como as espécies podem neutralizar essas doenças.

As alterações ambientais aumentaram a prevalência de doenças zoonóticas (doenças que são transmitidas de animais para humanos) e, embora tenhamos desenvolvido maneiras de controlar muitas delas, ainda há necessidade de aprender sobre essas dinâmicas, especialmente em cidades onde essas pressões parecem ser mais fortes.

Infográfico: Esquema do ciclo de vida de Plasmodium na malária aviária.

Efeitos da urbanização na malária aviária

Estudos revelaram que as aves urbanas estão expostas a múltiplos estressores, como poluição, fragmentação do habitat e baixa qualidade dos alimentos disponíveis. Esses fatores, atuando sinergicamente, aumentam a probabilidade de infecção por parasitas do sangue, o que pode afetar negativamente sua resposta imune2, sua capacidade reprodutiva3, a qualidade de sua plumagem4 e até mesmo o desempenho vocal5.

Por exemplo, aves comuns em cidades como pombos, rolas e pombas (família Columbidae), embora altamente adaptáveis, apresentam altas taxas de doenças parasitárias como a malária aviária6.

Zenaida auriculata

Na Colômbia, durante as últimas décadas, houve avanços no estudo dos fatores envolvidos nas infecções parasitárias na vida selvagem. Em particular, na Universidad Nacional da Colômbia – UNAL, as doutoras Nubia Matta e Angie González, lideraram esse esforço por meio do Grupo de Estudos de Relacionamento Parasita-Hospedeiro (GERPH). Por quase 30 anos, esse grupo se dedicou a identificar parasitas em várias espécies de vida selvagem, incluindo peixes, anfíbios, répteis e pássaros.

O árduo esforço para aprender sobre a diversidade de parasitas no território colombiano levou a uma compreensão da diversidade não observada e muitas vezes ignorada em nossos ecossistemas.

Por outro lado, na Universidad de Antioquia, nos concentramos em desvendar os fatores ambientais e a diversidade de hospedeiros que favorecem a diversidade e prevalência desses parasitas em comunidades de aves, dando resultados interessantes que apoiam a hipótese de amplificação da doença em áreas transformadas, e entender o papel dos gradientes ambientais e ecológicos em pequena e grande escala. Ver publicações em: https://www.researchgate.net/profile/Juliana-Tamayo-Quintero?ev=hdr_xprf

Grupo de Estudo de Relacionamento Parasita Hospedeiro (GERPH), UNAL Colômbia

Evidências científicas indicam que os gradientes de transformação de habitat afetam indivíduos da mesma espécie de forma diferenciada. Um caso bem documentado é o do pardal doméstico (Passer domesticus) na Europa, que apresenta variações em sua saúde e comportamento de acordo com o nível de urbanização7No chapim-real (Parus major), uma tendência para maiores prevalências e diversidade de Plasmodium também foi encontrada com o aumento da urbanização8.

Passer domesticus
Pesquisadores em cabana

Além dos efeitos da malária aviária e de outros parasitas, outras características da fisiologia e morfologia das aves são afetadas pelas pressões antrópicas que as aves devem superar em ambientes menos do que ideais, como as cidades. Por exemplo, a barata comum (Troglodytes aedon) em áreas barulhentas, eles cantam mais rápido, com uma faixa de frequência mais estreita e usam frequências mais altas para que seu canto seja ouvido melhor9. Esse esforço extra pode ter um custo energético, afetando a resposta imune e a reprodução.

Infelizmente, nem todas as espécies conseguem se adaptar. Alguns começaram a desaparecer das cidades, sendo relegados a pequenos abrigos verdes, isolados pelo concreto. Isso ocorre porque os corredores ecológicos que antes conectavam essas populações com mais áreas naturais são perdidos.

Em resposta a isso, a Associação para o estudo e conservação das aves aquáticas na Colômbia, Calidris, desenvolveu uma série de livros e pequenos guias de divulgação para o público em geral. Essas publicações buscam promover um melhor relacionamento entre pessoas e pássaros. Entre eles estão “O Bom Amigo dos Pássaros”10 e “Plantando árvores para colher pássaros”11. No caso do Brasil, existem materiais como o “Guia de Aves de Campo Grande – Áreas Verdes Urbanas”12. Esses materiais representam excelentes exercícios de divulgação científica que nos convidam a viver em harmonia com a natureza e a cuidar daqueles que prestam valiosos serviços ecossistêmicos em nossas cidades.

Material de divulgação sobre aves

Mas nem tudo está perdido. Os pássaros também nos mostram caminhos: eles nos ajudam a entender como prevenir e controlar doenças, como restaurar ecossistemas urbanos e como construir cidades mais amigáveis à biodiversidade. Ao estudar sua saúde, comportamento e distribuição, podemos identificar os primeiros sinais de propagação de doenças e os efeitos das mudanças ambientais e climáticas.

Por todas essas razões, a partir da biologia insistimos em conservar, restaurar e disseminar. Em aprender com outras espécies para estabelecer uma relação mais equilibrada com a natureza. Porque não estamos sozinhos: partilhamos este espaço com muitas outras formas de vida, e é nossa responsabilidade garantir que esta partilha seja possível, saudável e sustentável.

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Para mais informações:

  1. Hasik, A. Z., Ilvonen, J. J., Gobbin, T. P., Suhonen, J., Beaulieu, J. M., Poulin, R., & Siepielski, A. M. (2025). Parasitism as a driver of host diversification. Nature Reviews Biodiversity. https://doi.org/10.1038/s44358-025-00045-w
  2. (Bailly, J., Scheifler, R., Belvalette, M., Garnier, S., Boissier, E., Clément-Demange, V. A., Gète, M., Leblond, M., Pasteur, B., Piget, Q., Sage, M., & Faivre, B. (2016). Negative impact of urban habitat on immunity in the great tit Parus major. Oecologia, 182, 1053– 1062
  3. Lachish, S., Knowles, S. C. L., Alves, R., Wood, M. J., & Sheldon, B. C. (2011). Fitness effects of endemic malaria infections in a wild bird population: The importance of ecological structure. Journal of Animal Ecology, 80(6), 1196–1206. https://doi.org/10.1111/j.1365-2656.2011.01836.x
  4. Badás, E. P., Martínez, J., Rivero-de Aguilar, J., Ponce, C., Stevens, M., & Merino, S. (2018). Colour change in a structural ornament is related to individual quality, parasites and mating patterns in the blue tit. The Science of Nature, 105(1–2), 17. https://doi.org/10.1007/s00114-018-1539-z
  5. Lopez‐Serna, S., Gonzalez‐Quevedo, C., & Rivera‐Gutierrez, H. F. (2021). Beyond illness: Variation in haemosporidian load explains differences in vocal performance in a songbird. Ecology and Evolution, 11(24), 18552–18561. https://doi.org/10.1002/ece3.8455
  6. Schumm, Y. R., Bakaloudis, D., Barboutis, C., Cecere, J. G., Eraud, C., Fischer, D., Hering, J., Hillerich, K., Lormée, H., Mader, V., Masello, J. F., Metzger, B., Rocha, G., Spina, F., & Quillfeldt, P. (2021). Prevalence and genetic diversity of avian haemosporidian parasites in wild bird species of the order Columbiformes. Parasitology Research, 120(4), 1405–1420. https://doi.org/10.1007/s00436-021-07053-7
  7. Ferraguti, M., Magallanes, S., Jiménez‐Peñuela, J., Martínez‐de la Puente, J., Garcia‐Longoria, L., Figuerola, J., Muriel, J., Albayrak, T., Bensch, S., Bonneaud, C., Clarke, R. H., Czirják, G. Á., Dimitrov, D., Espinoza, K., Ewen, J. G., Ishtiaq, F., Flores‐Saavedra, W., Garamszegi, L. Z., Hellgren, O., … Marzal, A. (2023). Environmental, geographical and time‐related impacts on avian malaria infections in native and introduced populations of house sparrows ( Passer domesticus ), a globally invasive species. Global Ecology and Biogeography, 32(5), 809–823. https://doi.org/10.1111/geb.13651
  8. Caizergues, A. E., Robira, B., Perrier, C., Jeanneau, M., Berthomieu, A., Perret, S., Gandon, S., & Charmantier, A. (2024). Cities as parasitic amplifiers? Malaria prevalence and diversity in great tits along an urbanization gradient. Peer Community Journal, 4, e38. https://doi.org/10.24072/pcjournal.405
  9. Redondo, P., Barrantes, G., & Sandoval, L. (2013). Urban noise influences vocalization structure in the House Wren Troglodytes aedon. Ibis, 155(3), 621–625. https://doi.org/10.1111/ibi.12053
  10. “El buen amigo de las aves en los espacios urbanos”. Disponible en: https://calidris.org.co/wpcontent/uploads/2019/01/El_buen_amigo_de_las_aves.pdf
  11. “Sembrando árboles para cosechar aves”. Disponível em: https://calidris.org.co/wpcontent/uploads/2019/01/Sembrando_arboles_para_cosechar_ave s.pdf
  12. “Guia de aves de Campo Grande - Áreas verdes urbanas”. Disponible en: https://www.researchgate.net/publication/304540884_Guia_de_av es_de_Campo_Grande_-_Areas_verdes_urbanas}


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