As porteiras abertas pelo PL da devastação: uma nova “tragédia dos comuns”

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O Brasil, que deveria ser exemplo de conservação ambiental, está prestes a ganhar uma nova versão da tragédia dos comuns, o projeto de lei da "devastação".



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O gado tem uma alta capacidade de causar erosão devido ao seu grande consumo de pastagens e água, ao seu peso elevado que compacta o solo, e aos excrementos que reduzem os nutrientes da terra. Por maiores que sejam as áreas destinadas, quando o número de animais é muito alto, a superlotação e o sofrimento acabam sendo, quase inevitavelmente, um símbolo do desterro. Na “tragédia dos comuns” contemporânea, o excesso de gado esgota o pasto e empobrece o solo — síntese visual do futuro que o PL 2.159/2021, o chamado “PL da Devastação”, pode institucionalizar ao flexibilizar o licenciamento ambiental no Brasil.

Imagine um campo de pastagem aberta com uso compartilhado entre várias pessoas de uma comunidade de criadores de gado. Na busca de lucro, cada um pode livremente decidir aumentar o número de seus animais. No início, essa liberdade para empreender parece vantajosa. Mas com o tempo, o capim não se regenera, o solo se esgota, e o pasto morre. Quando cada um age pensando apenas no próprio benefício e com a ideia de que se não o fizer o vizinho fará, o recurso coletivo se destrói e todos perdem. Essa é uma metáfora da “Tragédia dos Comuns”, uma expressão consagrada após a publicação do famoso artigo do biólogo americano Garrett Hardin, em 1968. No sentido clássico, a palavra tragédia remete a uma situação cujo desfecho é inevitável: uma vez iniciado o curso dos acontecimentos, não há como impedir seu fim, geralmente trágico. Assim como nas tragédias gregas, o final funesto é previsto, mas nada pode ser feito para evitá-lo. 

Catástrofe em Brumadinho, Minas Gerais

Hardin identificou um padrão que está por trás de grande parte dos problemas ambientais contemporâneos. Sempre que um recurso natural de uso comum é aberto ao acesso irrestrito e sem controle, a competição entre os usuários tende a levá-lo à exaustão. Em seu artigo, Hardin exemplifica uma situação na qual cada criador que utiliza a pastagem para alimentar seu rebanho tem, em teoria, o interesse coletivo de preservar esse recurso. No entanto, como a entrada é livre e não há restrições no uso, nenhum indivíduo consegue impedir que os outros também explorem livremente o pasto. O benefício de adicionar mais um animal é exclusivo do proprietário, mas o custo do desgaste do pasto é compartilhado por todos. Assim, de forma autodestrutiva, todos são incentivados a aumentar ao máximo o número de animais, até que, inevitavelmente, o pasto se degrade completamente.

 Recursos comuns como águas superficiais ou subterrâneas, florestas e estoques pesqueiros são, por definição, finitos e sujeitos à degradação quando não há mecanismos efetivos de controle de uso. Por isso, políticas públicas visando garantir o uso sustentável desses bens são indispensáveis, incluindo medidas de gestão através do controle, tributação, precificação e aplicação de penalidades. Nesse contexto, o Brasil vive atualmente uma versão moderna e dramática da tragédia dos comuns, e ela atende por um nome oficial: Projeto de Lei 2.159/2021, apelidado por muitos como PL da Devastação. Esse projeto de lei, recentemente aprovado no Senado brasileiro, pretende flexibilizar as regras do licenciamento ambiental, justamente o instrumento que ajudaria a evitar tragédias como as de Mariana e Brumadinho em 2015 e 2019 respectivamente, que provocaram milhares de mortes e calamidades ecológicas, além de danos socioeconômicos irreparáveis. Entre suas propostas mais alarmantes, estão a possibilidade de autolicenciamento (em que empresas ou empreendedores podem sozinhos fazer seu licenciamento, sem estudos prévios), a dispensa total de licenciamento para atividades agropecuárias, bem como a criação de licenças especiais para empreendimentos considerados “estratégicos”, mesmo que representem riscos ambientais. Na prática, o PL abre as porteiras para o uso predatório de bens comuns, como florestas, rios, fauna e clima em nome do "progresso", do livre empreendimento e do lucro fácil de poucos. Tudo isso sob o pretexto de "desburocratizar o desenvolvimento" ignorando o custo coletivo, na forma de aumento do desmatamento, colapso da biodiversidade, contaminação da água e do solo, exaustão dos recursos naturais e o agravamento das mudanças climáticas. O motivo alegado é a demora no processo de licenciamento, que de fato decorre, na maioria das vezes, da baixa qualidade dos documentos de avaliação ambiental apresentados, que devem ser reformulados e ao que chamam burocracia.

Sem instrumentos eficazes de regulação, como esperar que potenciais poluidores atuem com responsabilidade e limitem voluntariamente seus impactos sobre o meio ambiente? É como se o Brasil, em nome da competitividade, dissesse: "explorem à vontade, depois a gente vê no que dá". Mas já estamos vendo. E sentimos na pele: ondas de calor extremo, enchentes cada vez mais violentas, secas prolongadas e a insegurança alimentar crescendo no campo e nas cidades. O PL da Devastação é um projeto de futuro insustentável. É a institucionalização da tragédia dos comuns em escala nacional.

Num país que deveria liderar a transição para um modelo de desenvolvimento sustentável e justo, essa proposta vai na contramão da ciência, do bom senso e da justiça social. Ela entrega nossos bens naturais a interesses privados, deixando o custo social e ambiental para as futuras gerações. 

Enchente em Bento Rodrigues, Mariana, Minas Gerais, Brasil

A tramitação, pretendida como de urgência para impedir discussões mais aprofundadas, cria uma situação paradoxal, dado que estará acontecendo a menos de seis meses da COP-30, que deverá ocorrer em Belém, sob as sombras da Floresta Amazônica, considerada a maior vítima desse projeto de lei.

Assim, o enfraquecimento do licenciamento ambiental deve acender um sinal de alerta em toda a sociedade. Afinal, sem regras claras e fiscalização rigorosa, os recursos naturais comuns permanecem vulneráveis, e o risco de novas tragédias se torna ainda mais iminente. 

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